
Frederico Venâncio, Diretor Geral da Phenix Portugal. Em entrevista à Dinheiro Vivo
06-Out-2021
O país foi a votos. De norte a sul, das ilhas ao interior, os portugueses elegeram os seus autarcas. Milhares de candidatos, largas centenas de eleitos, páginas e páginas de programas eleitorais, resmas de promessas. Horas e horas de noticiários dedicados às ideias dos candidatos ou às intervenções do primeiro-ministro, numa espécie de Volta a Portugal do PRR. Maternidades e pontes, estradas, habitação, veículos elétricos e promessas de descarbonização acelerada para combater as alterações climáticas.
Uns falam em menos impostos, outros em melhor trabalho e menos precariedade, quase todos têm a “sustentabilidade” na ponta da língua. Ou muito me engano, ou nenhum dos eleitos ou candidatos a lugares de governo nas nossas cidades tocou num tema que corre transversalmente a sustentabilidade, a economia, a fiscalidade, o emprego e o combate às alterações climáticas. Falo do desperdício alimentar – um sinal da nossa pobreza, não de abundância.
Num país onde tantos, em tantas cidades, não sabem de onde lhes virá a próxima refeição, temos de lamentar que quase 30% do que compramos tenha como último destino o caixote do lixo. Perguntará o leitor: o que é que o desperdício alimentar tem a ver com as cidades ou com os grandes temas em debate na campanha? A resposta é: tudo.
Olhemos para a fiscalidade. A Derrama é um imposto municipal aplicado sobre o lucro tributado das empresas. Sendo assim, porque é que as empresas com melhores práticas ambientais e sustentáveis não são positivamente discriminadas, reduzindo substancialmente a Derrama? Ou, por outra via, com estímulos como a isenção de impostos e de taxas locais para o comércio que apliquem roadmaps de boas práticas. Um restaurante que faça doação de todos os seus excedentes alimentares, com isso beneficiando toda a comunidade e contribuindo para a diminuição da pegada de carbono, poderia ser objeto de isenção da taxa de ocupação de espaço público ou de publicidade.
E quanto à precariedade social? Repare o leitor: só em Lisboa estimamos que, até ao final do ano, o total de desperdício alimentar seja superior a umas insustentáveis 5,3 milhões de toneladas de alimentos, o que, se considerarmos os habitantes deste distrito, se traduz em mais de 4 toneladas produzidas por pessoa. No que se refere a emissões de CO2 para a atmosfera, são quase 12 milhões de toneladas, ou seja, o equivalente a mais de 62 milhões de viagens de carro Porto – Faro, de ida e volta. E estes são apenas os valores referentes ao setor da grande distribuição alimentar. Se lhe juntarmos a restauração, a hotelaria, as pequenas e grandes cadeias comerciais, entre outros, os números deverão ser consideravelmente mais chocantes.
Os mais céticos dirão que é um problema das grandes cidades. Não é. O desperdício é comum a Leiria (mais de 1 milhão de toneladas), a Bragança (quase 257 mil toneladas), a Portalegre (mais de 398 toneladas) e, não esquecendo as nossas ilhas, também à Madeira (mais de 562 mil toneladas). Imagine a quantidade de pessoas e famílias que podem ser ajudadas com todos estes alimentos que, sim, lamentavelmente acabam no caixote do lixo.
Chegados a este ponto nem sequer falamos dos orçamentos para tratamento de resíduos sólidos, que consomem uma fatia considerável dos orçamentos municipais. Parte desses resíduos são alimentares. Quanto poderiam as cidades poupar com práticas antidesperdício?
As urnas fecharam, os votos estão contados e os autarcas estão eleitos. O PRR é apresentado como o milagre para todos os nossos problemas, mas não menciona o desperdício alimentar uma única vez nas suas 345 páginas. O desperdício vai continuar por aí, em todas as nossas cidades, à vista de todos mas esquecido na gaveta de quem nos governa localmente. Até quando?